quarta-feira, outubro 03, 2012

O envelope

Acabei de ler sua carta. Cheguei quase agora de viagem e logo percebi um envelope preto de bolinhas vermelhas na entrada da sala. Sabia que se tratava de você. Comigo está t-u-u-u-d-o b-e-e-e-m. Aquele “tudo bem” que costumamos responder quando encontramos um vizinho na padaria, ponto de ônibus ou na fila do caixa eletrônico. Na verdade, as coisas não vão tão bem assim. Estava precisando conversar com você no portão lá de casa à noite como fazíamos quando éramos adolescentes.  Sabe do que lembrei esses dias? Daquela nossa vontade doida de escrever um livro... Éramos sonhadoras, acreditávamos ideologicamente em mil utopias... E agora estou aqui, com esse gosto azedo na boca, uma agonia que sobe pela garganta e essa ânsia que faz meu coração acelerar. Quando foi que isso tudo começou?- você me pergunta- Eu efetivamente não sei. Só sei que não quero mais beber essa vodca quente de terceira sem limão sentada nessa sala escura, vazia e fria. “Felicidade foi se embora e a saudade no meu peito ainda mora”. Canto baixinho entre um gole e outro. Vou atender ao telefone. Pausa.

-Alô.

-Oi, poderia falar com a Carla?

- É engano, moço.

- Ah, desculpa.

- Nada.

Era engano. Voltando...Não consigo fingir pra você, querida. A verdade é que não estou bem há tempos. Passei o natal sozinha na minha casa de três cômodos em Paris. Não quis jantar com toda a família reunida. Eles incomodam muito com perguntas inoportunas e comentários impertinentes sobre minha vida. Estou farta disso. C-l-a-a-a-r-o, passar o natal sozinha foi melancólico ao cubo. Olhava pela janela e a rua estava vazia. Ouvia uma música natalina ao fundo e as gotas da goteira da sala caindo no chão. Ploc-Ploc-Ploc-Ploc-Ploc. Ao observar as gotas mergulhei num fluxo de idéias,flashes, pensamentos, projeções. Futuro-Passado-Presente.

Tenho 26 anos e não fiz nada daquilo que queria fazer. Queria ser bailarina, pianista, escritora, fazer cinema, teatro, cortar o cabelo, dizer e-u-t-e-a-m-o pra quem eu amo, aprender a falar alemão, francês, grego e holandês, vender minha casa e sair pelo mundo com uma mochila nas costas sem ter data para voltar, sentir o vento tocar meu rosto e perceber que vale à pena S-E-N-T-I-R. Mas, como sempre digo, por medo, vergonha, receio, preconceito ou uma dessas síndromes esquisitíssimas que adquirimos no decorrer da vida, deixamos os nossos desejos definharem no sótão cheio de baratas.

Sabe o que mais me incomoda? É essa dose amarga de anestésico que tomamos diariamente. No início, sofremos um pouco por abandonar gradativamente nossos sonhos, mas com o passar do tempo, a dor vai diminuindo até chegar ao ponto de nem lembrarmos mais de quem fomos um dia.

Ontem à noite, enquanto arrumava as minhas malas, achei uma foto da primeira semana de aula do balé. Um mês depois, desisti... A minha tentativa de escrever alguma coisa resultou em 33 contos inacabados, 6 livros pela metade e nenhum até hoje tem final.

Ploc-Ploc-Ploc-Ploc-Ploc


Uma difícil questão assola minha mente cansada: durmo, como uma porcaria qualquer, bebo outra vodca quente de terceira sem limão ou leio alguma coisa?

Ploc-Ploc-Ploc-Ploc-Ploc

Acabei por escolher a segunda opção e espalho farelos de biscoito por toda a parte. Volto para sala. Encosto-me no sofá – que comprei com o dinheiro que ganho vendendo minha capacidade criativa para aquela multinacional de merda – e olho para o alto, a fim de observar melhor a queda das gotas. Tenho que me contentar comigo, comigo mesma e com você. Obrigada pela sua companhia. Beijos.

PS. Espero que algo muito bonito aconteça com você! E, quando isso acontecer, não se esqueça de enviar-me um cartão postal do Brasil.

Após escrever a carta, a jovem de pijama listrado abriu a última gaveta da mesa do seu quarto e pegou um dos seus envelopes pretos de bolinhas vermelhas.